A Gestão de Documentos aliada a uma política de arquivos, tem sido propalada, no meio profissional, como uma panaceia soberana para solucionar as mazelas oriundas de sua ausência ou ignorância. A Gestão Documental tem sido projetada, delineada, mas parece existir ainda uma “inércia” institucional quanto a sua implantação. Por que isto acontece?
Como precursor da tese da Arquivista Social, no Brasil, e servidor público há quase 20 anos, penso que toda a resistência à implantação de uma Gestão Documental tem que ser, estrategicamente, mapeada e contornada, não pela via do confronto, mas pela via do diálogo democrático aberto e do processo de construção coletivo e colaborativo. O radicalismo parece ser um estigma religioso, mas na verdade, existe muito radicalismo institucional que fecha a porta ao modo diferente de contemplar as coisas! Gosto de chamar esse fenômeno de banker político-ideológico!
O outro aspecto, não menos relevante, é a falta de uma cultura institucional em relação ao que seja uma Gestão Documental e como ela é um elemento chave num contexto mais abrangente da Gestão de Conhecimento. Desconhecer sobre a Arquivologia e como ela é imprescindível à correta Gestão Documental, entretanto, me parece ser o pior obstáculo. E por último, conseguir implantar uma gestão documental sem a coordenação de um Arquivista é algo ainda mais improvável.
A arquivologia prima por princípios. Dentre eles os mais conhecidos: o princípio da proveniência, procedência ou de respeito aos fundos (respect des fonds) e o princípio do respeito a ordem original. Qualquer mistura no arquivamento ou até no popular “depósito” de documentos é um triste diagnóstico de que não existe profissionalismo no lidar com os documentos de arquivos. Um dia, essa “mistureba” vai dar rolo e/ou vai estourar – e alguém vai querer saber que foi o culpado?
Amo uma frase que diz: “A ordem é a primeira lei do céu.” (Eddy), e os princípios existem para servir de norte a todo o processo documental (*), bem como da própria Gestão Documental. Como atores sociais, os arquivistas sabem bem disto, tem graduação específica na área, e, estão aí para ser úteis à causa do patrimônio documental e do resgate da memória e da melhor viabilidade no direito de acesso à informação. | (*) nome técnico dado à completa noção do ciclo documental, desde sua concepção, produção, tramitação e destinação: arquivamento ou descarte.
Para uma compreensão profunda dos princípios arquivísticos o recomendável é o ambiente acadêmico, onde há o devido tempo para a desejável investigação analítica. Como exemplo, não poderíamos partir para uma explicação do princípio da proveniência, sem ter uma correta noção do que seja um “fundo de arquivo” – conceito bastante delimitado e específico.
Terei que evitar aprofundar-me nos conceitos para não delongar-me, mas compartilho abaixo o conceito de Gestão de Documentos no Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística:
“gestão de documentos – Conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento de documentos em fase corrente e intermediária, visando sua eliminação ou recolhimento. Também chamado administração de documentos.”
Em termos simples, a gestão documental é como uma certificação de qualidade de que a organização tem um modo diferenciado de lidar com sua massa documental acumulada, um modo profissional, e, não o resultado do amadorismo de alguns gestores esforçados e bem intencionados, ou do empirismo que toma como base o método da tentativa e erro – mais errando do que acertando por falta de conhecimento técnico, ou de acordo com a vontade e preferência pessoal de quem está incumbido da guarda dos documento!
Por que existem bankers de resistência ideológicas que são sempre contra a implantação da Gestão Documental?
Toda a ideologia é o resultado da livre expressão do pensamento e merece o devido respeito no contexto de uma democracia evoluida! Mas essa pergunta é muito pertinente e ela é chave para vencer os obstáculos e eventuais atrasos no reconhecimento de uma política de arquivos e na implantação da gestão documental.
Não vou polemizar aqui, mas simplesmente alertar que qualquer foco institucional de resistência à otimização do fluxo informacional, e, contrariedade aos esforços de melhoria do modus operandi do fazer arquivístico, é um ponto importante que não deve ser ignorado na fase de implantação da Gestão Documental. No meu olhar, o melhor meio de vencer tais obstáculos é convidar aqueles que opõem-se para estarem mais presentes na elaboração das políticas de Gestão Documental, mais cooperativos no processo de construção de uma relação dialógica construtiva – um diálogo aberto onde o foco deve ser: atender a necessidade da organização no que tange ao trato profissional da integralidade documental – tanto oriunda da área fim, como da área meio. Obstaculizar e criticar sem participar colaborativamente é sinônimo de involução, atenta contra as diversificadas demandas, e até contra à pertença cidadã, o direito de acesso à informação e a legislação vigente!
É no viés da pertença cidadã que poderíamos finalizar esse post com uma situação hipotética para corroborar a relevância da existência de uma Política de Arquivos e da implementação de um de seus componentes: a Gestão Documental.
Suponhamos uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, imaginemos São Borja, minha terra natal. Lá existe toda uma dinâmica de atividades de gestão pública e da iniciativa privada. É um município antecipado e tem uma soberania legal e relativa de administração pública dentro de sua jurisdição de governança.
Nosso foco são os documentos e seus produtores. Então imaginem todos os atores sociais: advogados, juízes, cidadão comum, órgãos municipais, enfim temos toda uma gama de produtores de documentos de várias atividades, públicas e privadas, como potenciais produtores e a lógica natural e normal de que tais documentos devam ser arquivados dentro da jurisdição municipal. Restringirei-me aos documentos em suporte papel, para não expandir muito as variáveis a serem contempladas.
Supomos agora, uma organização pública chamada, hipoteticamente, Junta de Serventias Cidadãs – JSC – nessa são julgadas demandas da população local e regional da jurisdição de São Borja. Na JSC, a cada demanda é gerado um processos judicial e estes processos ficam, pela lógica, arquivados nessa JSC. Até aí tudo bem! Agregue-se que não há uma política de arquivo e, por conseguinte, não há uma gestão documental e arquivística. Entretanto todos os documentos produzido pela JSC, permanecem arquivados localmente, como é o esperado. Proponho então um quiz didático:
QUIZ DA ARQUIVÍSTICA SOCIAL: Num belo dia, supomos que uma contra ordem, de uma instância superior da JSC, com sede em Porto Alegre, propõem que todos os processos mais antigos das JSCs das cidades do interior sejam, sumariamente, transferidos para um depósito central, localizado na Capital dos Gaúchos, incluindo São Borja.
Quiz 1: Reflita sobre os princípios arquivísticos, e, responda se a decisão proposta no quiz de transferir documentos das jurisdições locais e regionais para serem depositados na Capital é socialmente justa e acertada?
Dica 1: Antes de responder conheça mais dois princípios da Arquivologia que dizem respeito à questão da territorialidade: o da “proveniência territorial” e o da “pertinência territorial”:
“proveniência territorial – Conceito derivado do princípio da proveniência e segundo o qual arquivos deveriam ser conservados em serviços de arquivo do território no qual foram produzidos, excetuados os documentos elaborados pelas representações diplomáticas ou resultantes de operações militares.
“pertinência territorial – Conceito oposto ao de princípio da proveniência e segundo o qual documentos ou arquivos deveriam ser transferidos para a custódia de arquivos com jurisdição arquivística sobre o território ao qual se reporta o seu conteúdo, sem levar em conta o lugar em que foram produzidos.”
Dica 2: Sob o ponto de vista da cidadania, da solidariedade e empatia – imagine-se no lugar do outro – dos cidadãos da cidade de São Borja e sua jurisdição, no caso hipotético. Toda vez que um cidadão precisasse olhar um processo mais antigo, ou, um pesquisador quisesse ter acesso ao acervo arquivado para realizar sua pesquisa, seria melhor que o acervo estivesse no local onde foi produzido, ou, estivesse num local distante 594 Km de distância? Imaginemos uma pessoa idosa que precisasse de acesso à informação a um documento seu antigo para alguma finalidade probatória?
Alternativa de resposta do Quiz 1 do QUIZ DA ARQUIVÍSTICA SOCIAL, escolha a única resposta correta. A resposta está no final desse post:
A. ( ) é normal pois cumpre uma decisão superior e responde a uma necessidade no âmbito organizacional, que não contemplam o impacto social de tal transferência arbitrária, nem o desconforto dos cidadãos da localidade que foi privada de seu patrimônio documental.
B. ( ) é uma decisão impopular, anti-democrática, anômala e socialmente injusta. Afronta o princípio da soberania territorial dos arquivos e/ou territorialidade na Arquivologia: proveniência e pertinência territorial. Tal transferência para outra jurisdição, agrega graus de dificuldade na viabilização do direito de acesso à informação. Tal decisão só justificaria-se diante de um plano estratégico aliado à Gestão Documental, tal como a digitalização e/ou microfilmagem dos documentos, cuja infra-estrutura centralizada seja a opção economicamente mais viável.
C. ( ) é uma medida absolutamente acertada e inquestionável no que tange a economia e praticidade. Contempla o imperativo de economia de recursos públicos, tempo, espaço físico; economia de estresse na aplicação de metologia arquivística, e, “poupa” na não contratação de Arquivistas.
D. ( ) Tal transferência de documentos locais cumpre uma finalidade estratégica de gestão! Tal finalidade contempla: a pertença cidadã, as demandas da pesquisa erudita, e, facilita o atendimento das demandas do público interno e externo à JSC, tudo em conformidade aos ditames da LAI – Lei de Acesso a Informação, que entrará em vigor a partir do dia 18 de maio de 2012.
Com esse caso hipotético e o quiz, colaboramos para revisitar os princípios básicos da arquivologia. A arquivologia tem uma ética de sevir à administração, primordialmente, mas ocupa-se em mater sua vocação social e ser uma facilitadora do direito de acesso à informação. No meu olhar, a resposta B, responde corretamente ao quiz.
Tudo melhora se existir uma política de arquivos e, na medida de implantação de sua gestão documental – fluindo tranquilamente com o devido apoio dos gestores. Na linha de sua implementação, e, no caso dos documentos passarem por um plano de digitalização, a custódia definitiva, na fase permanente de arquivamento, conforme os princípios arquivísticos, deveria consolidar-se no local de origem (jurisdição territorial) onde foram produzidos, não necessariamente no mesmo prédio. Dando-se prioridade para locais adaptados e que respeitem as melhores práticas de acessibilidade, acondicionamento, higiene, iluminação e climatização. A presença de arquivistas têm-se mostrado catalizadora da implantação da Gestão Documental e no fluir da política de arquivos! Tais empreendimentos visam manter a integridade do patrimônio documental, matéria prima para a construção da memória além de respeitar a soberania territorial dos arquivos.
Referência: